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Ponto da dama no Relógio de São Pedro é oásis de paz na violência de Salvador

Cultura

Ponto da dama no Relógio de São Pedro é oásis de paz na violência de Salvador

Frequentada há décadas por amantes do jogo, o local conquistou respeito da comunidade e até dos marginais

Ponto da dama no Relógio de São Pedro é oásis de paz na violência de Salvador

Foto: James Martins / Metropress

Por: James Martins no dia 29 de abril de 2024 às 11:31

Atualizado: no dia 02 de maio de 2024 às 11:55

Na música “Criminalidade”, lançada em 1992, Edson Gomes denuncia a violência na cidade. A certa altura, há um verso que diz: “Os velhos já não curtem mais as praças”. Cada vez mais atual, a canção, porém, é desmentida nesse  ponto, não da letra, mas da cidade, pois na pracinha do Relógio de São Pedro (oficialmente, Barão do Rio Branco) os velhos curtem há décadas uma paz que até parece interiorana - dos tempos em que o termo ainda remetia a tranquilidade - enquanto brincam de jogo de damas. “Eu já frequento aqui há mais de 20 anos, é uma espécie de terapia, e olhe que nem jogo, prefiro ficar assistindo”, diz Jorge.

Ele destaca, como sucesso para o ponto, que reúne diariamente uma grande quantidade de apaixonados pelo jogo, entre profissionais e amadores, a localização privilegiada. “Tem a Estação da Lapa, o Terminal da França, o metrô… muitas vias de acesso. Sei que em Belo Horizonte também tem um ponto de damas bem frequentado, também no centro da cidade, mas acredito que o daqui é ainda mais fácil de chegar e, por isso, faz tanto sucesso”, explica. O fato é que a reunião já teve seu quartel general em outras partes de Salvador, como o bairro do Comércio (numa barbearia), no antigo Belvedere da Sé (hoje Praça da Cruz Caída), na Piedade e no 2 de Julho.

Na pracinha do Relógio de São Pedro, os tabuleiros já ficam fixados nas mesinhas de concreto, com quatro lugares cada, instaladas pela prefeitura. Os jogadores trazem apenas as pedras de casa, algumas feitas artesanalmente, com tampinhas, outras compradas em armarinhos. A maioria dos frequentadores tem acima de 50 anos. Um dos mais velhos, identificado apenas como Mário, de 75 anos, reforça a rivalidade com Vavá, numa tarde de estio neste abril chuvoso. “Ainda estamos decidindo quem é o melhor”, brinca Jorge, apimentando a rodada.


A cada nova partida, se fortalecem a rivalidade e as amizades. 

As sessões costumam começar no início da tarde e seguir até por volta das 20h. Houve tempo que alguns mais viciados se reuniam na pracinha até de madrugada, mas hoje em dia vence a cautela. Ali é possível acontecerem até seis partidas simultaneamente, como num verdadeiro torneio. E, em geral, acontecem mesmo, com muita gente assistindo e revezando. “Mas o intuito é apenas diversão. Tem campeão baiano de damas que frequenta aqui a praça, mas aqui não tem campeonato oficial, só brincadeira mesmo”, diz um jogador que prefere não se identificar.

Por falar em cautela, apesar de o lugar ser uma espécie de oásis de paz na violência cotidiana de Salvador, a maioria dos frequentadores não se sente à vontade para responder muitas perguntas. Jorge, porém, destaca que o fato de ser frequentada há muito tempo e por muitos homens, torna o lugar um porto seguro inclusive para quem não está jogando nem assistindo. A informação é confirmada por mulheres e funcionários do comércio da Avenida Sete, que aproveitam a “proteção” dos cavalheiros das damas para descansar sossegados.


Com as mesas já adaptadas para o jogo, a praça nunca fica vazia...

Tradição milenar, talvez originada no Antigo Egito, o jogo de damas é um desafio de estratégia que ajuda a desenvolver o raciocínio lógico e a capacidade de resenhar com os amigos. No Brasil e em Portugal a versão mais conhecida é a de 64 casas (8 por 8), mas, no resto do mundo, a mais popular é a que usa um tabuleiro de 100 casas (10 por 10).

O Relógio de São Pedro foi instalado em 1916, no local onde ficava a antiga Igreja de São Pedro, por sua vez demolida em 1913 para dar passagem à Avenida Sete de Setembro, cujo projeto original previa derrubar mais e mais monumentos e edificações da capital. Recentemente, a prefeitura de Salvador instalou ali perto um camelódromo, na intenção de organizar o comércio informal. Os senhores jogadores, porém, estão mais interessados no momento em abrir outros espaços e em usar bem a “comida forçada”.

O Relógio de São Pedro em ilustração do início do século 20. Pintura de Henrique Passos (reprodução @henriquepassos.arte).

Entre os bastante assíduos, há até um argentino, sempre de máscara e chapéu, que prefere não conversar com a reportagem. “Aqui a gente faz amizades, conversa, se distrai… eu só frequento há uns oito meses, mas percebo que faz diferença na minha vida, alivia das agonias, é uma terapia mesmo. Espero que essa reunião nunca acabe”, clama Ricardo, do time dos mais novos.